Uma verdadeira quermesse em casa
Famílias que tenham filhos sabem que inevitavelmente irá haver uma panóplia de objectos que se vão deixando acumular em casa. O volume de tralha cresce exponencialmente de ano para ano até que chegamos confortavelmente aos 5 anos de idade com o quarto da miudagem, garagem e zonas anexas com infestações de objectos de várias categorias, em jeito de quermesse.
Ele é roupa em catadupa que os familiares teimam em deixar nas nossas casas em sacadas do Continente mesmo sem ser preciso só porque “Tenho aqui uns vestidinhos que vão ficar tão bem!”. Brinquedos novos e velhos para várias idades e vários estádios pedagógicos juntamente com outros capazes de criar crises psicóticas e de neurastenia nos pais mais tranquilos. Berços, carrinhos, cadeirinhas de comer, andarilhos, tapetes, colchas, cobertas, caminhas: de tudo um… muito.
Desenhos aos molhos!
Porque também incentivamos a criatividade dos nossos pequenos desde tenra idade, acabamos por contar também com uma enxurrada sem fim de desenhos. Ironicamente, mal acabam de perceber que têm duas mãos, andamos de volta deles a querer puxar esse lado artístico porque há sempre um membro qualquer da família – mesmo que seja distante – que tem dotes para a pintura, para o desenho ou artes que tais e nestas coisas da genética “nunca se sabe”.
Quando esse primeiro momento iluminado acontece, quando se vislumbra uma carinha com dois olhinhos no meio de tanto rabisco, exultamos, ligamos à tia, à avó e ao cão a anunciar tal feito. É o prenúncio da avalanche. Sabem aquele momento nos filmes de catástrofe? Aquele em que há um sismólogo qualquer com não sei quantos cursos e mestrados que avisa meio mundo que está para acontecer uma erupção de um vulcão famosamente extinto? Isto normalmente em zonas com muita gente, muito turismo e pouco interesse financeiro em catástrofes de grande magnitude? E ninguém presta atenção?
É mais ou menos isso que acontece com todos os pais. Há sinais dessa avalanche mas nós não ligamos nenhuma, só para ter o desenho da carinha com os olhos.
A gente incentiva, louva e coloca vezes sem conta os rabiscos prodigiosos dos nossos pequenos no frigorífico com ímans que eles próprios fizeram com as suas mãozinhas (mentira: fomos nós). E depois o que acontece nos anos a seguir? Esses rabiscos multiplicam-se qual porquinhos da índia em plena fase procriativa e damos por nós com as consequências desses encorajamentos, desses reforços positivos e dessa educação proactiva para a criatividade. Sim, porque mais valia termos ficado quietinhos no nosso canto e ter-lhes negado todo e qualquer acesso a lápis de cor e de cera. E nada de mostrar quadros e exemplos de arte. Hippies de um caneco.
Então, o que fazer?
E agora o que fazer? Temos gavetas e gavetas de desenhos e o volume teima em aumentar.
O facto é que nos inibimos de deitar fora ou descartar o que quer que seja porque cada desenho que nos trazem é-nos entregue com a mesma solenidade com que Edgar Degas pintou as famosas bailarinas. Como podemos desapontar os nossos Pablitos em potência?
Imaginem-se na posse de uma galeria de arte. É preciso saber geri-la com punhos de ferro. E não se pode aceitar tudo para essa galeria. Enquanto eles são pequenos ainda podemos ir seleccionando com alguma rotina o que nos parece ser significativo e importante para tempos vindouros e o que pertence ao fundo de um caixote do lixo. Sim, sugiro mesmo deitar fora. Parece uma heresia, mas por vezes é necessário fazê-lo se queremos que a nossa galeria ainda tenha algumas paredes à mostra. Ficam aqui 3 truques para essa gestão a longo prazo.
O truque da foto
No fundo, o que nós queremos guardar quando conservamos um desenho é a recordação do mesmo. O marco importantíssimo que foi ver o nosso filho desenhar olhos pela primeira vez. O facto de essa recordação estar sob a forma de papel ou digital é um mero detalhe, na grande maioria das vezes. Daí que a minha sugestão para tudo aquilo que é significativo mas que carece de texturas e relevos é a foto. Cria uma pasta específica para essas fotos e vai guardando tal como farias com a gaveta dos desenhos.
Não te esqueças de fazer uma selecção à mesma, não vá o diabo tecê-las e ficares sem espaço no computador à custa dos gigabites com os 194 desenhos de supostos gatinhos (ou serão golfinhos? cães? uma nova espécie?) que o teu filho rabiscou na consulta do pediatra. Também tens uma coisa muito gira e simpática que se chama Google Photos. Ora espreita aqui.
Pessoas muito tácteis vão ter mais dificuldade em pôr em prática este truque. Por esse motivo aconselho a fazê-lo com alguém que segure nos desenhos para evitar que se active a chamada “simpatia cinestésica”. Não sabes o que é? Anda descobrir neste meu artigo!
O truque dos 6 meses
Não é só para a roupa e para os nossos pertences. Também podes adequar este truque aos desenhos. Faz assim: após a criação da obra de arte, retira-a de circulação por uns tempos. Não a deites fora. Nada disso. Basta só que a mantenhas fora da vista tentando chegar aos 6 meses sem lhe mexer. Se não houver perguntas de espécie alguma durante esse período da parte do teu Dalizinho e não considerares merecedora de pertencer à tua galeria, descarta-a.
Claro que todos os pais vivem o perene terror de um dia serem abordados pela sua criaturinha prodigiosa de 7 anos com uma lista descritiva de todas as criações produzidas no espaço de 4 anos a querer fazer uma auditoria para ver se está tudo em ordem.
Por esse motivo, se estiveres na dúvida, tira a fotografia e guarda-a bem. É a prova B.
O truque do “sistema”
Este é talvez dos truques com maior sucesso, sobretudo se for bem conseguido. É daqueles que exige muita prática e experiência naquele tipo de magia a que chamamos “parentalidade”. Sim, não é um caminho nada fácil, mas é o caminho que a longo prazo poderá ajudar o teu filho a saber organizar-se melhor e a criares uma relação honesta, sincera e porreiraça com ele. Daquelas em que, quando ele tiver idade, vai querer beber a sua primeira cerveja contigo. Depois de tu lhe pedires umas 10 vezes, claro.
O truque é simples: espera que o teu filho comece a ter capacidade suficiente para entrar em acordos contigo (isso depende de miúdo para miúdo). Quando isso acontecer, propõe um sistema com ele para resolverem juntos essa coisa dos desenhos. Coloca-lhe o problema e deixa-o participar na decisão e na escolha desse sistema. Explica-lhe a questão do espaço e mostra alguns exemplos práticos.
Não te esqueças que as crianças são extremamente visuais. Por isso faz com que esses exemplos sejam bem visuais e bem fáceis de entender à primeira. Mostra-lhe a gaveta onde vão ficar os desenhos e que a mesma não é infinita. Vão ter que seleccionar o que fica na gaveta e o que não pode entrar na gaveta para que a mesma possa ficar cheia só com o que é mesmo importante.
E quem diz gaveta, diz caixa. Podem até arranjar uma caixa toda catita, decorá-la e dar-lhe um nome. Tipo “caixa de memórias”. Assim ele tem um espaço específico para guardar as suas produções. E vai começar, desde cedo, a pôr em prática a tomada de decisão. E tu a ajudar o processo. Tão bom!
Repetir, repetir, repetir
“Isso é tudo muito bonito, mas havias de ver as birras que o meu João faz quando lhe peço para fazer isso!”. Pois, situações dessas também vão acontecer. Daí que temos também que retirar da nossa manga o nosso trunfo de pais. Fazer o papel mais ou menos de moderadores da folha e de fiscais da tinta. Tem que ser. Em situações mais complicadas, tens que pôr um limite e estabelecer alguns “carris” que fazem sempre muito bem.
Se houver amuanço, dá-lhe espaço (e tempo!). Dá-lhe a entender também que, desde o momento em que tu colocas esse limite, ele tem que ser respeitado. Com serenidade, calma e assertividade. Opta por um discurso racional e volta a explicar a questão do espaço. Dá-lhe a escolher entre o desenho a, b ou c. Mas confirma que não podes guardar todos.
É difícil, eu sei. Vais ter que repetir esta rotina vezes e vezes sem conta. A palavra repetir é talvez a mais proferida no dicionário de qualquer pai por este mundo fora. Mas é através da repetição de bons hábitos e melhores práticas que os nossos filhos vão apreendendo essa coisa esquisita e chata que é organizar. Que depois vai ser o fundamento das suas escolhas e decisões de adulto, a dita base, ou como dizia o Sr Abade a respeito do Carlos da Maia “É a basezinha!”.
Estranha-se mas depois entranha-se. Já dizia o Fernando Pessoa.
Ele dizia isso da coca-cola mas era só fachada.
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